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sexta-feira, 13 de julho de 2012

S" MAIÚSCULO.



Três pontos a menos. E ele tirou 5,0 em um tema que todos obtiveram nota máxima. Ele era péssimo em gramática ou estava simplesmente fazendo pilhéria. Por seis meses consecutivos o mesmo erro. E eu fazia questão de colocar a correção em vermelho, para que na próxima meus olhos não doessem com uma falha tão banal para um menino de terceiro ano. Foi então que eu o chamei até a minha mesa.

      - Serafim, por que não leu o que escrevi na redação anterior?
      - Eu li, professora. E li o que escreveu nessa também.
      - E por que não corrigiu?
      - A senhora está errada.
      - Errada? Ora, quanta audácia. Não estou, Serafim. Veja aqui, bem aqui, onde circulei.
      E mostrei-lhe novamente o equívoco, dessa vez apontando com a armação do óculos e testas enrugadas com o descaramento. Serafim havia colocado novamente quase tudo em letras maiúsculas.
      - Está na sua gramática, menino… Se você ousasse desgrudar suas páginas, saberia. Amor, mentira, amizade, raiva, ciúmes… Nada isso é nome de gente.
      - Mas é gente sim, professora.
      - Bobagem… Você conhece ou já tocou o amor? Já conversou com a raiva?
      - Eu já.
      Pobrezinho. Estava doido.
      - Não é possível, meu querido. Sentimento a gente só sente. O próprio nome já diz. Só devemos colocar em letra maiúscula aquilo que vier depois de ponto final ou for nome próprio. Já estudamos isso… E veja aqui. Você assinou o próprio nome com letra minúscula. Você não é gente, criatura?
      - Não, não e não! Professora… Amor também é gente, não ofenda-o. Eu que não mereço letra maiúscula, pois nada faço. Sou apenas um segundo de vida, que importo para o mundo? Ser letra grande é merecimento. S grande é de Sabedoria.
      - Não, meu amor… Seu nome é próprio.
      - Que propriedade, professora? Como Serafim existem vários tantos. Amor, Raiva, Amizade, Ciúmes… São existem eles. 
      - Está bem, Serafim. Peça ao “Amor” para que arredonde a sua nota, então.
      - Mas o Amor tem mais coisas pra se preocupar do que com a prova da senhora, professora.
      - Então escreva-me outra redação, com quantas linhas quiser e sem parágrafos. Explique-me quem são seus “S”entimentos.
      O menino vibrou. Arrancou a folha do caderno às pressas e pôs-se a escrever. Duas horas depois, lá vinha dois olhinhos verdes com o papel na mão todo rabiscado. E fui ler.
      “Tudo começou quando o Amor, barbudo e sentado na esquina, estendeu a mão mais uma vez para pedir esmola. Era um mendigo feio, que ninguém olhava, mas que estava nas estatísticas de miséria do mundo todo. Ele tinha sim a sua importância, faltava as pessoas pararem de o idealizarem como número. Mas o coitado escolheu a hora errada de manifestar-se. Falou com a Raiva, aquela velha raquítica que deve ter mais de cem anos. A Raiva mando-o trabalhar, sem saber que o Amor já estava fazendo seu papel de mendigo. O Amor, coitado… Só sabe mendigar. As pernas amputadas, os óculos escuros e o cigarro na boca querendo queimar-se por dentro, eram provam disso. A Compaixão aproximou-se. Compaixão é a secretária do banqueiro da cidade, Mentira. Compaixão olhou de cara feia com a Raiva e deu quatro moedas ao pobre Amor. O banqueiro aproximou-se… Disse à Compaixão que aquele dinheiro lhe dizia respeito, afinal era ele quem pagava seu salário. A Raiva sorriu, mas o Sorriso de verdade só chegaria depois. Era o recém-formado em direito, acompanhado da namorada, a Lágrima. O homem disse que as moedas pertenciam ao mendigo, que sorriu junto com o Sorriso dos desamparados. Mas se é mendigo, não há o que pertencer-lhe, argumentou o banqueiro logo em seguida. A Lágrima fez o Sorriso voltar pra casa, alegando que ali não era lugar pra ele ficar. Sorriso tinha fama de dominado pela mulher. Foi aí que a Amizade apareceu, com roupa de ginástica e caminhando com o cachorro gordo. Perguntou à Raiva o que estava acontecendo e ela simplesmente disse que o Amor estava roubando-os. Mentira confirmou. Compaixão só sabia chorar. Amor sorria. Nesse instante a Raiva quis bater no mendigo risonho. Foi aí que o policial chegou, o senhor Paixão. Paixão só sabia agir quando os ânimos esquentavam-se e a Razão o liberava do expediente. Todos estavam detidos. A Raiva foi logo dizendo que eram todos uns incompetentes. A Compaixão teve pena dos outros prisioneiros. A Vida e a Morte estavam na mesma cela. Morte era acusada de sequestro relâmpago, e a Vida era seu cúmplice. Especializadas em suicídio armado, a Vida dava motivos e a Morte concretizava o serviço. O Tempo também estava preso, com fama de querer sempre fugir. A Justiça chegou, sempre atrasada. A Raiva disse: É tudo culpa da Compaixão. A Compaixão foi logo tratando-se de defender, dizendo ser escrava da Mentira. Mentira negou tudo e disse que tudo só piorou quando a Amizade chegou. A Amizade, frágil, desmaiou. E o Amor sorriu. A Justiça deu o caso por encerrado sem antes ouvi-lo. Justiça era meio surda de um ouvido, mas ninguém sabe. Todos foram libertos, mas o Amor ficou. Amor é aquele mendigo que mesmo quando não faz nada, é culpado de tudo. Culpado pelo azedume da Raiva, pela benevolência da Compaixão, pelas armas da Mentira, pela desistência do Sorriso, pela presença da Lágrima, pelo silêncio da Amizade, pelos ímpetos da Paixão e pela burrice da Justiça. Prisão perpétua para o Amor que só queria mendigar.”
      Ainda não sei se Serafim tem Razão… Mas saí da escola àquela manhã com a certeza que eu, eu mesma, havia negado fortunas ao Amor durante toda a minha Vida. Nota máxima. E não se fala mais nisso. Serafim deu um Sorriso… Mas dessa vez, a Lágrima divorciou-se dele e veio morar em meus olhos. Que um dia eu me torne maiúscula. Ou quem sabe, que um dia eu me torne Sentimento. (Cinzentos)

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