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terça-feira, 19 de junho de 2012


“Tava na fila do cinema quando vi um cara com blusa das formigas atômicas acenar pra mim. Olhei duas, três, cinco mil vezes pra ver se eu não tava delirando. Ele vinha na minha direção com os braços abertos e eu calculei a distância entre o elevador mais próximo e eu. Não dava tempo de correr. Também não dava tempo de cavar um buraco no piso do shopping e pular dentro.
― Ei, preta.

Ele me deu um abraço estranho de uma só mão e eu meio que abracei a outra mão dele e… hãm, foi um desastre. Mas meu coração doeu quando eu ouvi essa voz e esse apelidinho que anos atrás, eram suficientes pra deixar meu dia mais feliz.
― O…hei… ã. ― Eu queria dizer “Hey, oi, e aí?”. Mas não conseguia pronunciar direito.
― Quanto tempo né.
― Pois é… ― Balancei a cabeça.
― É… e aí?
― Tudo nice.
― Então… anos, né?
― Pois é. Três ou quatro. 
― Acho que é quatro.
Três anos, nove meses e quatro dias, querido.
― É… 
― Arram…
― Pois é.
Passamos algum tempo nos olhando constrangedoramente. Lembrei do tempo que nós tínhamos assunto. Era natural como respirar. Passávamos umas boas três, quatro horas no telefone. O assunto nunca acabava e o silêncio também não era um incômodo, nós meio que nos entendíamos. E olha só pra gente agora. Procurei na minha cabeça algum assunto que poderia falar com ele, mas não vinha nada. Estava quase correndo pra longe quando…
― Uma amiga minha te viu um dia desses.
Meses e meses atrás, corrigi mentalmente.
― Dalila?
― Não, não. Você não conhece.
― Então como ela sabe quem sou eu?
Ok. Já posso correr. Deveria dizer “não, é que assim, você é meio que o cara que eu mais amei na vida e meio que eu ainda falo de você pra Deus e o mundo”? Não né.
― Quis dizer que você não deve se lembrar dela, enfim, esquece.
― E esse suco aí na tua mão?
Olhei pra baixo e notei realmente que eu estava segurando um copo de suco de laranja. Alguém, que eu não me lembrava agora quem era, tinha ido comprar pipoca pra gente também, eu acho.
― É um suco.
― Tá brincando que é um suco? ― Ele ironizou. ― Tô querendo saber, é, cadê tua coca cola?
― Ah, sim, sim. Não tomo mais, sabe. ― Era minha deixa. Ensaiei falar isso faz anos. ― Mudei muito.
― Tu? Mudou? Tu? Parou de tomar coca? Ta beleza, eu acredito.
― Não ta vendo o suco na minha mão? Parei de tomar coca.
― Não parou não. 
― Parei. ― Queria jogar o suco na cara dele ― Isso aqui é suco. 
― Mas continua querendo tomar coca. 
― Isso não significa nada. 
― Claro que significa. ― Ele sorriu ― Significa que tu deixou de tomar coca, mas nunca vai deixar de tomar coca. Ela ta aí dentro de ti ainda. Tu sempre vai desejar uma coca gelada que rasga a garganta. Pega logo uma coca.
Verdade. Quase pude sentir o gosto enquanto ele dizia isso. Como eu queria coca-cola. Quase dois anos que eu não tomo e eu nunca deixei de querer tomar.
Mas enfim, o que tem haver? 
― Que bom que só querer não dá celulite né? ― Sorri. 
― Você seria linda de qualquer forma. Com ou sem celulite. ― Ele falou em um tom mais baixo e mais intenso, e eu tive um ataque cardíaco, pelo menos era o que eu sentia. Olhei pros lados disfarçando a timidez. 
― E os caras? ― Ele perguntou quando teve a certeza de que eu não iria mais responder. 
― Que caras? 
― Os caras, né. 
― Hãm? 
― Namorados, preta, namorados, problemas, paqueras, etc.
Ah sim. Isso me lembrou que tinha alguém comprando pipoca em algum lugar desse shopping. Olhei de relance pra ver se encontrava, mas aparentemente não estava em nenhum canto. Ou era culpa minha, que só conseguia ver o cara de camisa das formigas atômicas na minha frente.
― Tô namorando. 
― Você? ― Ele levantou a sobrancelha. 
Me senti um pouco ofendida com o tom de voz dele.
― Eu mesma. 
Ele me fitou por algum tempo em silêncio. 
― O que? ― Já tava sem paciência.
― É… ― ele pensou por mais alguns segundos ― Estranho, eu acho.
E eu entendi o que ele quis dizer. A gente só se conhecia como um sendo a pessoa do outro. Nós éramos o amor da vida um do outro, a alma gêmea, a metade da laranja e qualquer outro nome que dão pra isso. Era algo fora do contexto esse nosso encontro, a gente aqui, como dois conhecidos que não se vêem há anos. Como que a gente foi se perder assim? Como que nossas vidas que pareciam tão juntas e tão entrelaçadas e tão grudadas, inventaram de mudar de rumo? Eu me sentia até culpada, eu acho. Era tudo bonito demais e triste demais e apaixonado demais pra ter acabado.
― É.
― Ainda escreve?
(Escrevo. Tô escrevendo um texto sobre você nesse instante.) ― Não ― Menti. ― Não tenho mais tempo pra isso. 
― Hum… Então você mudou.
― Mudei muito.
― Mentira sua ― Ele me olhou como uma criança implicante.
― Acredite no que quiser ― Retribui o olhar.
― Aposto que ainda conta os dias e as datas.
― Não mesmo. Nem me lembrava mais disso. Aliás, que dia é hoje?
― Quanto tempo pro teu aniversário?
― Que?
― Quanto tempo falta. Para o teu. Aniversário. ― Ele falou pausadamente.
Engoli seco. ― Eu sei lá.
― Eu sei que você tá contando.
― O que? Eu mesm…
― Anda.
― Não sei.
― Diz.
― Não dig…
― Agora.
O encarei por alguns segundos até suspirar pesadamente.
― Três meses e quatro dias.
― Aniversário da tua cachorra.
― Sete meses e… seis dias. 12 de dezembro. Aniversário de Belo Horizonte. Dia da morte do José de Alencar. Aniversário do Silvio Santos também.
― Viu, eu disse.
― Grande coisa. Todo mundo tem uma mania.
― Grande coisa. Você não mudou nada.
― Cortei o cabelo.
― Não mudou a cor.
― Não assisto mais novela.
― Continua achando que a vida é uma novela mexicana.
― Não como mais miojo.
― Ainda odeia usar garfo pra cortar a carne. 
― Tá. Tá. Eu entendi. Não mudei. Você venceu. Agora, pra quê tudo isso?
― Pra me certificar.
― De que?
Ele olhou pro lado e suspirou. ― De nada. De nada. Ei… tem um cara parado ali feito um bobo, acho que ele ta procurando alguém.
Segui o seu olhar e avistei um cara com um combo de pipoca na mão.
De alguma forma ele sabia quem esse cara é. Estranho.
― É meu namorado. Eu… eu tenho que…
― Tem que ir. ― Ele balançou a cabeça positivamente.
Droga. Porque é tão difícil ir embora? ― Então, até um dia.
― Até ― Ele pegou minha mão e deu um beijo, então deu um meio sorriso e foi se afastando.
Mordi o lábio enquanto o vi partindo ― já o vira partir tantas outras vezes. A gente nunca acha que um dia vai acabar. A gente sempre acha que vai ter mais, algum dia, alguma vez. Até que acaba. Até que o máximo de proximidade entre vocês seja apenas encontrar um ao outro na fila de um cinema. E não há nada mais triste que isso de seguir em frente. Não há nada pior do que desvencilhar sua vida da de outra pessoa. E mesmo com tudo, é como se não existisse realmente um fim, mesmo depois de ter tido um fim…
― Espera! Ele se virou pra mim com surpresa em seus olhos ― O que?
― Você!
― Eu…
― Você é minha coca-cola.
― Eu sou o quê?
― Minha coca-cola. ― Ele vinha se aproximando e eu fechei os olhos, tentando me lembrar das palavras dele anteriormente. ― “Significa que tu deixou de tomar coca, mas nunca vai deixar de tomar coca. Ela ta aí dentro de ti ainda.”
― E o que isso significa?
― Você sempre vai estar aqui, mesmo não estando.
Ele deu um sorriso triste, e pelo seus olhos, vi que o meu também era. Ele colocou uma mecha do meu cabelo para de trás da minha orelha e suspirou.
― Você sempre vai ser a minha coca-cola, também.
― Até mais então.
― Até um dia, preta.
Cada um seguiu em frente novamente ― e literalmente. Fui encontrar o cara com o combo de pipoca, mas não pude deixar de olhar pra trás e ver, por mais uma ― e talvez última ― vez, o cara com a camisa das formigas atômicas.
Acho que vou tomar coca-cola hoje.”
~ Iolanda Valentim 

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